- Dói?
Aquela pergunta me parecia tão estúpida. Nunca respondi.
Hoje a psicóloga na minha frente, me questiona sobre a
mesma coisa e eu continuo sem saber o que dizer. Apenas observo os quadros
expostos na parede branca, e os objetos em cima da mesa, completamente inertes,
assim como eu, sentada nessa maldita cadeira.
Ela me olha, como se esperasse por algo.
- Você pode simplesmente dizer sim ou não!
Não entendo como responder isso, faria alguma diferença na
minha vida.
Está frio aqui dentro e eu gostaria muito de estar debaixo
das cobertas, lendo algumas poesias. Parece que o tempo congelou. Olho inúmeras
vezes no relógio, preso no meu pulso, mas é como se os ponteiros estivessem
parados.
-É a quinta vez, que você vem aqui e você continua em
silêncio. Faltam alguns minutos. Diz alguma coisa.
O que ela espera que eu diga? Que eu odeio a minha vida,
que as pessoas me assustam, me irritam e que as acho ridículas? Que prefiro
conversar comigo mesma e que não sei lidar com os meus sentimentos, e que por
isso os ignoro? Claro, eu poderia falar tudo isso. Mas do que importa? A vida
continuaria o mesmo inferno de sempre e eu não preciso reabrir feridas que ao
menos parecem cicatrizadas.
-Você prefere desenhar?
Ah, sim, com toda a certeza! Sou uma ótima desenhista! A única
coisa que sei fazer com as minhas mãos de maneira útil, é escrever.
-Quanto mais você se calar, mais você vai sofrer. Se abrir,
ajuda.
A única coisa que gostaria de abrir agora, é a porta desse
consultório, para poder ir embora.
- Eu sei que você está passando por momentos difíceis. E
sei também que é cansativo, mas você precisa lutar.
Eu estou lutando. Sozinha.
- Seus pais se preocupam com você e estão tentando te
ajudar, mas é importante que você se ajude também.
...
- Seus pais te amam e...
Ela está louca? Não importa, porque antes que ela termine
de falar, eu me levanto da cadeira e vou em direção a porta.
- O tempo não acabou.
- Vai para o inferno!
A psicóloga me olha assustada e depois sorri e diz:
- Tivemos um avanço!
- Só se for em direção ao fundo do poço. Adeus.
Saio da sala, sigo pelo corredor e desço do prédio. Ando, ando
e ando... Chego em casa e meus pais, como em todas as vezes que nos encontramos,
me olham com asco e sussurram um “olá filha. Voltaremos tarde, não nos espere”.
Ótimo, assim não preciso suportar a presença repudiante dos dois.
Vou para o meu quarto, assisto um filme, leio algumas poesias
aleatoriamente, escrevo no meu diário, escuto músicas e adormeço. Acordo, o Sol
está brilhando lá fora, e aqui dentro, a escuridão me protege. O alarme toca,
me levanto e vou para a escola. Algumas horas de tédio e estou em casa outra
vez. Almoço sozinha, passo a tarde sozinha. Já está escuro, meus pais chegam, e
dizem “olá filha” em uníssono e sobem para o quarto. Me sento no sofá da sala,
algumas horas se passam, eu vou para a sala de jantar. Faço um lanche, sozinha.
Subo as escadas, vou ao banheiro e tomo banho, e saio, sigo pelo corredor até
meu quarto, me deito na cama e durmo. Amanhece e acontece a mesmíssima coisa
até o fim de semana, que levanto tarde e meus pais viajam para a casa da praia.
Amanhece, desligo o despertador, vou para a escola, volto e
almoço. Troco de roupa e vou para o consultório da psicóloga. Me sento na
cadeira.
- Boa tarde! Como se sente hoje?
...
- Imagino que da mesma maneira que das últimas vezes em que
nos vimos.
-Sim.
Ela me olha surpresa e diz:
-Triste? Perdida?
-Sim.
-Você conseguiria descrever como são essas sensações, ou
por que se sente assim?
- Vamos ser objetivas, tudo bem?
Ela me observa, intrigada e acena com a cabeça, me afirmando
que sim. Então eu continuo.
-Meus pais não me entendem, porque eles acham que sou uma
aberração. Eles são ignorantes, que acreditam que me ignorar e me pagar uma
terapia, é uma boa forma de me mostrar que quem eu sou, não é normal ou
aceitável.
- Por que eles achariam algo assim de você?
- Porque eles me viram beijar uma menina na boca.
Ela fica em silêncio por alguns instantes e diz:
-Isso significa que eles não aceitam quem você é.
-Sim. Meus pais acreditam que uma terapia pode me curar.
-Curar?
-Para eles minha orientação sexual, é uma doença.
- Eu preciso falar com seus pais.
-Não sei se vale a pena.
-É preciso tentar.
E tentamos. muitas vezes, mas eles insistiam em não aceitar
o óbvio. Passamos um mês fingindo que não nos conhecíamos, até eles aceitarem
conversar com minha psicóloga. Conversamos os quatro, e apesar de eles ficarem
receosos, no final acabaram compreendendo e entenderam que me amar, significa
me apoiar, e aceitar quem eu sou de verdade.
...
Tolice! Isso é o que eu gostaria de contar a você leitor. Na
realidade, eles nunca me apoiaram e continuam me olhando, com asco e me veem
como uma aberração. Foi então que percebi, que por conta de um beijo, perdi
meus pais para sempre. Entendi também, que algumas vezes a intolerância e o
preconceito, faz você perder quem mais ama no mundo. Eu perdi meus pais, e eles
perderam uma filha. É triste saber que eles não irão na minha formatura do
colégio, nem da faculdade, que não ficarão orgulhosos das minhas conquistas e
de que não me apoiarão nos meus momentos mais difíceis. É angustiante saber quem
são seus pais, conviver com eles, e ainda assim ser órfã.
E hoje eu consigo responder àquela pergunta. Sim, dói. Dói
muito, ver a repulsa no olhar, por você, das pessoas que te deram a vida. Dói
amar e em troca receber desprezo. Dói saber que você nunca será amada, pelos
seus próprios pais.